Não
sei se o Dia das Bruxas tem algo a ver com isso, fato é que minha caçulinha
Sofia, 2 anos, aplicou-me uma de suas travessuras neste domingo: num piscar
de olhos – e realmente não mais do que isso – ela desapareceu. Sofia é dessas
crianças silenciosamente travessas, a espécie mais perigosa que existe! Não dão
aviso prévio, nem qualquer sinal da arte planejada, fazendo-nos crer em
sua completa absorção numa atividade. Basta um instante de vacilo, um flash de
pensamento, para a pessoinha deslizar sem qualquer ruído rumo ao portal de
aventuras que se abre diante de seus olhos, e ali desaparece.
Fiquei
pensando a quem puxou essa criança... Filha de pai centrado e mãe muito calma,
tranqüila e ponderada. Alguém acredita? Nem eu. Se travessura constasse na
ficha policial, a minha seria quilométrica. Minha mãe descreve exatamente as
mesmas características de Sofia em mim, nos meus longínquos 2 anos: perfeitamente ágil,
rápida em manobras e, claro, adepta do silêncio dos profissionais. Pois travessura
com barulho e estardalhaço é coisa de amador, não rende créditos ao travesso.
Uma
de minhas primeiras ousadias, conforme relato materno, foi escalar as paredes do
quarto do casal e me instalar sobre o alto roupeiro de meus pais. A casa,
antiga, era feita de madeira, mas ainda assim é um mistério como uma
criança menor de 2 anos conseguiu tal proeza. Minha mãe tinha certeza de que eu
estava no quarto, mas não podia me encontrar em lugar algum. Para seu chamado,
a resposta era o silêncio. Eu já sabia falar, claro, mas que graça haveria em
denunciar meu perfeito esconderijo? Não o fiz com o uso da palavra, mas fui
traída (leia-se salva) pela providência divina: esbarrei na bíblia de minha
mãe, lá em cima guardada, que desabou com estrondo revelando o meu segredo. Os
olhos assustados de minha mãe pousaram então sobre uma menininha sorridente,
que feliz parecia dizer: “Ok, você venceu o esconde-esconde desta vez. Mas me
aguarde na próxima!”
Entre
as peripécias mais lembradas por minha mãe estão as que datam da época em que
eu, filha primogênita, recebi um irmãozinho. O quarto materno se transformava em laboratório de
experiências para mim diante da menor desatenção de minha mãe. Não queria fazer
mal ao bebê, meu intuito era sempre o de cuidar dele tal qual cuidava de minhas
bonecas. Assim, fui flagrada alimentando o pequenino numa ocasião; em outra, eu
estava a medicá-lo com os remédios de minha mãe, obtidos graças a minha técnica
de spider-girl. Por sorte, minha ação
foi obstruída no momento em que eu me preparava para administrar a primeira
dose. Mas o ato supremo de carinho foi minha mãe ter encontrado o berço móvel,
de vime, onde o bebê dormia, em posição vertical, sendo que a criança estava
com as pernas para o ar e eu a acariciá-la e beijá-la na face, que ficou a
centímetros do chão.
Minhas aventuras preferidas, contudo, foram as vividas em companhia de meu cachorrinho Zumbi. Tínhamos a mesma idade e éramos grandes amigos. Ele era meu
guia nas fugas freqüentes, me levava segura pelo vasto mundo proibido por papai
e mamãe. Segura? Nada além de algumas lavouras e potreiros que atravessamos. Preciso confessar que alguns riachos também. Zumbi e
eu tínhamos uma técnica infalível: assim que mamãe ouvia o choro do bebê e
ia ao quarto para alimentá-lo, nós íamos
sem remorsos ao mundo para explorá-lo!
Eu
seguia o cãozinho, onde quer que ele se metesse. Confiava integralmente nele, afinal era o cúmplice perfeito, aquele que jamais me trairia.
Se corria perigos, não sabia. E se soubesse, não me importaria com eles. Queria
fazer minhas descobertas de criança, nasci com sede de aventura. Não me bastava
o mundo limitado do quintal de casa, eu queria as emoções da viagem ao exterior
– além dos campos e lavouras da família.
O
cúmulo das fugas aconteceu quando ultrapassei os limites das terras vizinhas e
cheguei a estrada principal, onde pelo menos uma vez por dia passava um carro – não
apenas as habituais carroças ou o maquinário dos agricultores locais. Aquilo
aos 2 anos era a triunfal descoberta de um novo planeta! Olhei
extasiada para a rua que vinha, passava por mim, e seguia rumo ao infinito. Tal
qual Neil Armstrong a pisar na lua uma década antes, aventurei
meus passinhos pelo mundo mágico que se estendia a minha frente. E teria ido
além, conquistado quem sabe até o sol, se não fosse interceptada por meu pai e
seu olhar fatal de ‘jamais, JAMAIS tente isso novamente’. Se não sou hoje uma
famosa cosmonauta como outras valentes Valentina’s, meu pai é o grande culpado.
Imperdoável.
Sim,
lembro bem da visão de uma criança travessa. Não existem obstáculos para ela. A
lembrança desse fato me fez gelar diante do sumiço repentino de minha
caçulinha. Teria ela ido desbravar a lua e os planetas sem fim?! Entendi
perfeitamente os sentimentos de minha
mãe durante minhas fugas, a dor absurda, o medo da perda, o pânico que se
instaura e os segundos que parecem eternos até reencontrar o pequeno
aventureiro. Negligência? Talvez. Quem mandou, afinal, a mamãe exausta piscar
os olhos?! Mas acima nos céus há um Pai Celestial atento que, como protegeu a mim
no passado, garantiu meu reencontro quase imediato com minha travessa, sã e
salva. Desvendei-lhe o esconderijo.
Em
seu olhar, reconheci um familiar: “Ok, você venceu o esconde-esconde desta vez.
MAS ME AGUARDE NA PRÓXIMA!”
Suzy Rhoden
Gravataí, 31 de outubro de 2011