Esther fechou a porta atrás de si e arrastou-se até o sofá. Eram visíveis os sinais de cansaço, trabalhara mais uma vez até a exaustão. As últimas gotas de energia, guardara pra gastar com os filhos assim que chegasse em casa. Mas ambos dormiam, informou a babá, quando se cruzaram na garagem. Era isso o que mais doía: deixá-los dormindo de manhã e, à noite, ao retornar, encontrá-los novamente na cama. Claro que fazia o melhor que podia, ligava várias vezes ao dia. Mas tinha certeza de que isso não era o suficiente, não compensava a falta que ela, na condição de mãe, fazia em seu próprio lar.
Com esforço, tirou os sapatos, sentindo os pés doloridos. A função executiva exigia saltos sempre altos. Em outros tempos, reclamava por não poder usá-los, já que sapatilhas pareciam a opção mais conveniente a uma atarefada mãe de duas crianças pequenas. Sentia-se a gata borralheira, sem vaidade, sempre às voltas com os meninos, participando de suas brincadeiras. Raramente estava maquiada, nem brincos tinha condições de usar, pois Nícolas não resistia àquelas argolas compridas. Diante desse pensamento, um sorriso estampou seus lábios: era uma gata borralheira feliz... mas não tinha consciência disso na época. Reclamava todos os dias da rotina que lhe cabia. Agora estava linda, impecavelmente vestida e maquiada. Cada fio de cabelo no seu devido lugar. E, claro, as argolas e os acessórios cuidadosamente escolhidos completavam seu elegante visual. Mas faltava algo... o sorriso, antes espontâneo diante das peripécias de seus filhos, agora era superficial, forjado para os clientes. Linda por fora, mas vazia por dentro.
Balançou a cabeça, como para espantar maus pensamentos, e, recobrando as forças, andou até o quarto dos filhos. Abriu lentamente a porta e parou por um instante a observá-los em seu sono tranquilo. Via os sinais do tempo no espaço que Pietro ocupava na cama: estava tão grande, tão alto! Parecia bem maior do que os 6 anos que a certidão de nascimento registrava. Movida pela saudade, aproximou-se e, encostando a testa na dele, fez silenciosa briga de narizes, brincadeira que sempre arrancara do garoto muitas gargalhadas. Mas dessa vez, ao invés de riso, houve silêncio, remorso e lágrimas.
Com um aperto no coração, andou até a cama de Nícolas, seu caçulinha. Mesmo dormindo, não negava a adrenalina escondida debaixo dos cabelos de anjinho, loiros e cacheadinhos. Sabia que quando acordasse, seria num salto, e já sairia aprontando pela casa afora. Sorriu com a lembrança, mas logo sua face anuviou-se: não conseguia lembrar a última manhã em que o tinha visto despertar! Uma semana talvez, ou mais... Angustiada, aninhou-se ao lado dele na cama e num impulso apertou-o contra o peito, como se com esse gesto pudesse reter o tempo que passava e congelar as lembranças queridas. Nícolas reagiu ao carinho, empurrando-a pra fora da cama com os pequenos bracinhos. Não estava mais acostumado aos mimos noturnos, ao afago que em outros tempos a mãe lhe devotava. Não precisava mais dela.
Esther deslizou para o chão, e deixou-se estar ali, perdida entre lágrimas e emoções, abraçada aos próprios joelhos. Não entendia porque estava tão triste e com a enorme sensação de vazio dentro do peito. Lutara muito pra retomar a carreira depois do nascimento dos filhos. Recebia olhares de admiração por todos os lugares onde passava, servia de exemplo pra outras mães, que queriam ser como ela: sair das clausuras da maternidade diretamente para o mundo dos negócios. Ela era inspiração para outras, era o modelo que deu certo da versão moderna de ser mulher.
Mas por dentro, quem era ela? Uma mãe que convivia com a culpa. A culpa de todos os dias sair bem cedo de casa, sem a chance de uma refeição com os filhos. Lógico que tudo que ela fazia era por eles, para garantir seu futuro, a faculdade, o intercâmbio, e tudo que o dinheiro pudesse comprar. Não lhes faltaria nada, nada! Isso ela disse para as amigas quando, após insistentes reclamações, convenceu o marido de que sua renda seria importante no lar. Ele gostava da ideia de tê-la em casa, perto dos filhos, já que ele próprio passava dias distante da família, em viagens de negócios. Mas ela insistiu, queria auxiliar nas despesas, queria sentir-se parte do sustento de seus filhos, exigia a condição de igualdade. Será? Não podia mentir pra si mesma, sabia que muito do que havia feito fora por vaidade. Os elogios a sua capacidade foram sementes que germinaram no coração, ela almejou mais do que tudo o sucesso, a realização profissional. Conseguiu, era de fato talentosa. Trocou a vida de mãe em tempo integral pela vida de mulher moderna, independente, pró-ativa. Só não sabia que uma conquista exigiria o sacrifício absoluto da outra.
No começo, tudo deu muito certo, a vida transcorria em perfeito equilíbrio: Esther administrava bem as horas de executiva, intercalando-as com as tarefas de mãe. Enfrentava o trânsito, mas conseguia almoçar com os filhos e levar Pietro pessoalmente pra escola. Porém, com o crescimento profissional, vieram os almoços com o chefe ou então com clientes, e os compromissos sempre urgentes além do horário. Viu-se obrigada a transferir suas responsabilidades no lar para a empregada e abraçou de vez a causa da empresa.
Seus filhos tinham brinquedos caros, tinham livros, excelente escola. Se não tinham tudo que o dinheiro podia comprar, era apenas uma questão de tempo. Ela podia oferecer exatamente aquilo a que se propôs e que, alguns anos atrás, ela chamou de “o melhor para meus filhos”. Mas seria mesmo o melhor oferecer sua ausência diária? Oferecer seus boa-noites tardios e suas lágrimas arrependidas? De repente, Esther deu-se conta de que pagava alguém para viver o privilégio que lhe cabia por direito: desfrutar diariamente da companhia dos filhos, vê-los crescer e amadurecer, participar de suas descobertas! Não teria ideia do dia em que caiu o primeiro dentinho de Pietro, se não fossem os registros de Malvina. Nem saberia que Nícolas já era capaz de escrever sozinho o próprio nome. Desconcertada, chegou à conclusão de que era apenas coadjuvante na vida de suas crianças: a personagem principal, que recebia os melhores sorrisos, que confortava nos momentos de dor, que brincava de esconde-esconde ou rolava com eles na grama, era a babá!
Se na vida profissional havia alcançado êxito, o que sobrara de sua vida pessoal? Deixaria patrimônios aos herdeiros, e nenhuma tarde sequer correndo com eles no parque. Compareceria às mais importantes reuniões de negócios, mas sequer saberia o assunto abordado na última reunião da escola. Influenciaria gerações futuras com sua visão empreendora, enquanto seus filhos cresceriam de acordo com os valores das professoras ou da empregada. “Que troca absurda foi essa que fiz?!”, gritou para si mesma, inconformada.
Só então olhou para o relógio e percebeu que era tarde, muito tarde.
Ou não. Sorriu, enquanto tirava as argolas.
Suzy Rhoden